O Tesouro Escondido

A fé não é um lugar de conforto. É esta a lição que os crentes – pois é a eles que José Tolentino Mendonça se dirige – devem retirar deste livro e que o autor resume de forma feliz: “Não há parques de estacionamento espirituais” (p. 30). Mas se a fé implica movimento - “o modelo da Fé é um ancião que se torna viajante (p. 31) – desassossego, inquietação, Tolentino insta o crente a transcender-se através da oração, do silêncio e do recolhimento. Não é um desafio menor. Num mundo de ruído e de agitação, ir ao encontro de Deus na solidão e no silêncio é ir contra a corrente. Quanto Tolentino cita São João da Cruz - “a linguagem que Ele mais ouve é o amor calado” – propõe um confronto com a norma social, com o mundo. Para se aproximar de Deus, o crente deve, em primeiro lugar, encontrar-se consigo: “É precisamente quando estamos mais sós, quando somos mais nós próprios, sem subterfúgios nem evasões, que Deus se manifesta mais perto de nós” (p. 25). Vai no mesmo sentido a exaltação da oração, esse colocar-se despojado diante de Deus: “rezar é viver, com todas as nossas forças e com toda a nossa realidade, na presença de Deus.” (p. 79). A aceitação do catolicismo não-praticante transformou a prática cristã em mera mecânica, distante da experiência total em que o ser se vira para Deus. Tolentino defende uma ruptura com essa vivência religiosa invertebrada e morna que, em vez de aproximar, afasta o homem do divino.

 

Em nenhum outro episódio bíblico, a relação individual com Deus e a fé como lugar de desconforto está tão bem representada como na historia de Abraão e do sacrifício do seu filho, Isaac. Ao aceitar o desígnio de Deus, Abraão suspende toda a razão, toda a lógica, para se entregar à Razão divina, ao absoluto. É o gesto mais difícil de compreender para o descrente. O seu acto só é compreensível à luz de uma fé pura, total, que cega quem tenta apreendê-la com os olhos físicos: “A Fé em Deus sobrepõe-se a todas as convenções culturais e a todas as lógicas puramente humanas. A Fé é essa confiança pessoal colocada em Deus e que ultrapassa tudo.” (p. 37). Palavras que encontram eco no que Tolentino escreve sobre a conversão de Paulo: “Este ver não é apenas um observar com os olhos da carne; é o ser visto, é o passar a ver com os olhos da fé” (p. 111). Quando, através da fé, o homem se entrega à vontade divina, renuncia ao humano - desumaniza-se - para participar do absoluto (“amar a Deus com fé é reflectir-se no próprio Deus”, escreveu Kierkegaard). Quem não acredita está, por definição, impedido de aceder a tal mistério. Limita-se a observá-lo com “os olhos da carne”. A questão é saber quais os cristãos dispostos, não a emular Abraão, mas a aceitar o mistério de uma tal fé, a regressar a uma vivência espiritual mais pura, intensa e, de certa forma, primitiva. Num dos capítulos mais interessantes (VIII), o que começa por ser um apelo à reconciliação com a beleza, tema abordado por Bento XVI na visita a Lisboa, acaba como um regresso às raízes do catolicismo como religião do sofrimento. A beleza celebrada é aquela que fere, que não pode ser compreendida quando contemplada independentemente da dor que provoca e do sofrimento no qual se funda, que se materializa na imagem do Cristo crucificado, tão cara aos católicos. Tolentino cita Ratzinger que fala sobre a “ferida do Amor” e diz que a beleza da verdade só pode ser encontrada quando se aceita o sofrimento”; fala da Beleza de Cristo que “[nos] fere intimamente”; diz que “o nosso coração [...] é chamado a ser ferido pela Beleza pascal de Cristo”. Acrescenta: “O cristão define-se como alguém que vive “ferido” pela beleza singular de Jesus. E essa “ferida” gera em nós desejo, vontade, atracção, disponibilidade para o seguimento”. Partindo da beleza, o discurso de Tolentino segue em linha recta para o sofrimento. Um sofrimento prazeroso, o “cautério suave”, a “deleitosa chaga” cantados por São João da Cruz em Chama de Amor Viva. Do ponto de vista de Tolentino, a relação de Fé com Deus é uma relação de amante e amado, que pede, uma vez mais, o silêncio: “o que ama sabe que o que o amor lhe pede, antes de tudo, é que aprenda a guardar o segredo do que é amado” (p. 96). Aquele que ama Deus suspende a razão, quer participar da natureza divina do Outro (“Deus é infinitamente Outro”, escreve Tolentino, o Outro inantigível ao qual apenas se pode aspirar), sofre. Chegamos à conclusão que é o sofrimento, mais do que a beleza, que ocupa o lugar central na experiência cristã, tal como Ludwig Feuerbach demonstrou em A Essência do Cristianismo: “[u]ma determinação essencial do Deus feito-homem [...] é a paixão. O amor confirma-se pelo sofrimento”, “[s]e Deus como actus purus é o Deus da filosofia, por sua vez Cristo, o Deus dos cristãos, é a passio pura” ou “[a] religião cristã é a religião do sofrimento”.

 

Ao exortar o crente a um regresso à solidão, ao silêncio, à redescoberta do sentido profundo da oração, Tolentino não transige com a religiosidade postiça e maleável que transformou o catolicismo num albergue espanhol sem direito de admissão. A exigente práxis cristã implícita nas suas palavras é um desafio ao qual nem todos os católicos poderão corresponder. O Tesouro Escondido destina-se a crentes, é verdade, mas não a todos.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 09:45
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