O Caderno Cinzento

Esta edição de O Caderno Cinzento, do catalão Josep Pla (1897-1981) é uma amostra da totalidade da obra. Das novecentas páginas do original foram seleccionadas pouco mais de duzentas, mas, não podendo jurar pela qualidade das restantes, arrisco dizer que se trata de um livro notável e que o editor não exagera quando diz que é “uma das obras imprescindíveis do século XX.” Escrito e apresentado como um diário da juventude, nos anos após a I Guerra, o autor trabalhou nele até um ano antes da sua publicação, em 1965. O resultado é um híbrido perfeito em que o detalhe do memorialista se une à maturidade do pensamento e do estilo. É provável que Pla tenha aproveitado muitas anotações da sua juventude, mas essa é apenas a base factual onde engasta reflexões originais, descrições melancólicas e críticas corrosivas. O registo diarístico tem outra vantagem: permite uma grande variedade de temas sem a solenidade de uns Pensamentos. O diarista é um observador casual, muitas vezes um flâneur, sem os espartilhos narrativos de um romancista e sem as obrigações morais do historiador, e que até se pode dar ao luxo diletante de questionar a utilidade do que escreve: “Penso durante um bom bocado neste caderno inútil.” (p. 143). É este desprendimento, e também a aparente dispersão caótica, que acaba por se revelar circular e sinfónica, que confere unidade ao livro e constitui a sua riqueza. Ao descrever um amigo, Pla diz que “é [...] um sinfónico, um espírito que integra uma infinidade de factos, emoções, alusões, sentimentos e referências” (p. 198) – dificilmente poderíamos encontrar uma definição mais acertada do autor deste livro. A Catalunha daquela época, as fábricas, os veraneios, as intrigas de província, os costumes, a educação, a gastronomia, a religião, a política, a literatura, raramente são apresentados de forma abstracta ou teórica, mas recorrendo a exemplos concretos: um bordel que só inspira tristeza, o fumo acre lançado pelas chaminés, a crítica ao poeta Jacint Verdaguer, a descrição de um funeral, uma sardinhada opípara, o arroz de peixe tão dominical quanto a missa, a apetência dos velhos pelo pão, o conflito latente entre germanófilos e francófilos que ameaça os rendimentos da avó Marieta, as tertúlias dos intelectuais de Barcelona. A par deste talento de etnógrafo, Pla demonstra uma segunda sensibilidade mais habilitada a registar as variações meteorológicas, as características de cada estação do ano, os estados de alma, os passeios inconsequentes, o tédio pessoano de aspirações vagas tão visível nestas passagens: “Queria estar em todo o lado e nunca saio de casa. Queria açambarcar tudo e, na realidade, tudo me é indiferente [...] Queria, queria...Queria o quê?” (p. 48); “Sinto-me uma larva que não acaba de se construir” (p. 84) ou “tudo é indiferente e igual” (p. 139). Na grande sinfonia que é O Caderno Cinzento há espaço para o bucólico e para o urbano, para os dias de Verão e para a chuva persistente, para o público e para o íntimo, e certamente para muito mais se nos lembrarmos que faltam aqui seiscentas páginas.

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publicado por Bruno Vieira Amaral às 09:46
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