Uma Gata, um Homem e duas Mulheres

A dissecação de casamentos é uma das especialidades da obra de Junichiro Tanizaki (1886-1965), um dos grandes nomes da literatura japonesa do século XX, a par de Yasunari Kawabata e de Yukio Mishima. A novela Uma Gata, Um Homem e Duas Mulheres é mais uma autópsia de um organismo vivo e anestesiado pela indiferença, a exemplo do que sucedia em Alguns Preferem Urtigas (romance publicado em 2009 pela Teorema). Entre a tradição e a modernidade, entre os atavismos e a ocidentalização, o verdadeiro drama das personagens de Tanizaki é a ausência de emoções, um certo enfado pelo outro que, se nunca é explicitamente manifestado, também não é camuflado ao ponto de ser invisível. Em vez de grandes explosões de cólera e de violentos acessos de raiva, Tanizaki prefere a descrição das punhaladas silenciosas, das pequenas recriminações e dos ardis subterrâneos. O casamento segundo Tanizaki é, pois, um banquete de que só os passivo-agressivos podem desfrutar na plenitude. E quanto menos emoções envolvidas, mais suportável se torna. Por isso, o casal de Alguns Preferem Urtigas não tem coragem de avançar para a separação. Por isso, Shozo, o protagonista desta novela, não se importa de ser humilhado desde que consiga aquilo que quer e que, neste caso, é estar perto de Lily, a gata que ele ama mais do que a mãe e as mulheres. A imagem pública de Shozo é a de um homem fraco, sem vontade, “lorpa”, mas isso não o incomoda. Não é uma daquelas personagens burguesas e suburbanas sufocadas pelas aparências; pelo contrário, as aparências funcionam como um escudo protector que lhe permite dedicar-se sem reservas ao único ser ao qual está ligado por uma emoção genuína e concentrar-se nos seus prazeres fúteis, “jogar um pouco de bilhar, entreter-se com bonsais envasados e namoriscar as empregadas dos cafés baratos.”

 

As aparências estão também no centro dos dois contos, O Pequeno Reino e O Professor Rado, que completam o livro. Juntamente com a novela que lhe dá o título, são exercícios miniaturais da arte superior de Tanizaki: a produção de superfícies de tal forma polidas que o leitor é induzido a ver o seu próprio reflexo no destino das personagens.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 18:52
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