Um Tigre nas Florestas da Noite

Imagine o leitor a história de uma relação amorosa entre uma criança de sete anos e um homem de cinquenta. Imagine que esta história é narrada em retrospetiva na primeira pessoa pela criança, agora mulher. O exercício é quase inconcebível porque estica ao máximo a “suspensão da incredulidade” e, ao mesmo tempo, os limites da imaginação moral do leitor. Agora, em vez de suspender a incredulidade, ative a credulidade, porque Um Tigre nas Florestas da Noite não é ficção, são as memórias da autora, Margaux Fragoso.

 

Um livro de memórias, apresentado enquanto tal, estabelece um contrato tácito com o leitor. Diz-lhe que os factos narrados, ainda que diluídos pelas impressões subjetivas da memória, são reais. A este contrato o escritor pode adicionar umas cláusulas que têm por objetivo desestabilizar a perceção do leitor. As cláusulas são a estrutura narrativa e a linguagem que pertencem ao domínio da ficção. Não se trata de fraude ou má-fé (acrescentar factos fictícios a uma autobiografia, por exemplo), mas da exposição dos factos num quadro narrativo associado à ficção. Digamos que é um pequeno e admissível truque a que o memorialista recorre para levar o leitor para um território híbrido e que alguns ficcionistas utilizam de forma inversa, narrando ficções como se fossem factos históricos (pensemos, para não gastar mais tempo, na abertura de O Nome da Rosa, de Umberto Eco). A narradora de Um Tigre nas Florestas da Noite Fragoso vive numa espécie de indecisão camuflada, de cuja verdadeira intenção nos vamos apercebendo ao longo do livro. Vejamos este exemplo logo nas primeiras páginas: Fragoso transcreve, em discurso direto, uma história que o pai lhe contou há muitos anos; recorda-se de todos os pormenores (“Fez uma pausa para beber um gole de cerveja e continuou.”). Na mesma página, conta uma das brincadeiras que fazia com Peter (o homem de cinquenta anos) e confessa ao leitor “Não me lembro bem da história”. No primeiro momento, quem nos conta a história é a narradora omnisciente que se lembra de todos os detalhes de uma conversa tida há anos. A seguir, é a memorialista sincera que se dirige ao leitor admitindo as limitações da memória. Saltamos da tirania do narrador omnisciente para a humildade do memorialista falível.

 

Em que é que ficamos? Partimos, como sempre, das condições contratuais determinadas pela própria escritora. Fragoso quer que a sua história – as suas memórias - seja lida desta forma. Cabe-nos perceber as razões de uma estrutura narrativa tão oscilante, tão arriscada, cujo maior risco é o de parecer uma tentativa de envernizar os factos, de embelezar as memórias, de pegar em migalhas dispersas pelo tempo para compor um bolo comemorativo. Mas não é o que acontece aqui. A estrutura está intrinsecamente ligada à matéria sensível relatada (o abuso continuado de uma criança, a própria autora) e à vontade de expor o comportamento de um pedófilo de um modo que não seja condicionado pelo juízo moral imediato, de um modo que permita que ele se revele gradualmente. A “humanização” do monstro, aqui, não é mais do que deixá-lo, narrativamente, à vontade para que o possamos observar em ação, sem que à partida olhemos para ele como um monstro. Porque os abusos deste género nem sempre são cometidos com recurso à violência ostensiva, nem sempre parecem abusos. Aliás, o estratagema de um pedófilo como Peter é esse: o de fazer passar um abuso por uma relação amorosa consentida (daí a escolha de palavras no início deste texto), entre iguais, escolhendo alvos suficientemente vulneráveis para entrarem nesse universo. O pedófilo constrói uma fantasia à volta do abuso e – este é o seu trunfo – tem a capacidade de a impingir às vítimas. É uma teia pacientemente tecida com a finalidade de o abuso não parecer abuso, de o agressor não parecer agressor e de a vítima não se sentir vítima.

 

Em vez de gritar a sua dor, em vez de escrever um livro-choque, Margaux Fragoso recorreu a uma trama narrativa que desmonta, com idêntica paciência, a teia do agressor. A crueza explícita das cenas de sexo descritas pela narradora e a colaboração ativa da criança/adolescente nas fantasias do agressor não são uma exploração sensacionalista, nem uma culpabilização da vítima. São uma demonstração do funcionamento da teia, do quão persuasivo consegue ser um pedófilo, da sua capacidade de distorcer a realidade e de a impor aos outros. A dada altura, a vítima cai numa violenta dependência emocional do agressor: “Sem Peter para me ver, para me adorar, como é que eu poderia existir?” (p. 255); “Jamais trairia a única pessoa no mundo que se preocupava verdadeiramente comigo” (p. 265); “eu era a droga de Peter e ele era a minha droga” (p. 286). A fantasia “suave, afável, insinuante” impõe-se brutalmente com toda a sua força destrutiva. Da mesma forma, a verdade implacável dos factos e da memória emerge da estrutura narrativa oscilante que a autora escolheu para a revelar.

 

Considerada esta informação, será, pois, legítimo fazer uma avaliação literária da obra? Sim, porque Fragoso escolheu um edifício literário para alojar as suas memórias, porque assumiu, tal como um romancista, as liberdades no discurso (direto e indireto) e também porque a sua linguagem introduz elementos cujo efeito não é o de reforçar a veracidade dos factos mas o de produzir “realismo”: desde a típica observação realista, quase neutra “A luz que entrava pelas janelas refletia-se nas tábuas do soalho” à sequência de metáforas neste excerto: “Enroscava a boca à volta dele, como uma cascavel sem presas devorando um rato vivo. (...) Depois, tratava das veias, da pele brutalmente esticada, cheia de estrias, retesada e saliente ao mesmo tempo, aquela pele lá em baixo que parecia a pele de alguém que sofrera uma queimadura grave, encrespada tal como a pele da nossa mão ficaria se a aproximássemos das chamas para logo a retirarmos.” Sendo incursões literárias meramente competentes (qualquer comparação com Lolita, de Nabokov, é delírio) não comprometem, contudo, a estabilidade factual da história (aquilo que em termos ficcionais designamos por verosimilhança). É um livro das memórias dolorosas de feridas infligidas sob o disfarce do afeto. O mérito de Margaux Fragoso é conseguir desmascarar esse arremedo de afeto e deixar visíveis as feridas sem demasiado verniz literário.

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 11:26
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