Quarta-feira, 20 De Abril,2011

A Guerra do Fim do Mundo

O romance está morto. O narrador omnisciente é uma antiguidade novecentista, uma fraude. Estas teorias, que atingiram o auge da popularidade nos anos sessenta, nem sequer arranham as paredes da fortaleza clássica que é A Guerra do Fim do Mundo. Publicada em 1982, a obra de Mario Vargas Llosa ignora essas discussões teóricas, remetendo-as para o baú das excentricidades intelectuais que marcam o declínio da cultura francesa. Perante este romance, o nouveau roman, os exercícios literários sem personagens e sem intriga, dissolvem-se no ar, esfumam-se, inexistem.

 

A Guerra do Fim do Mundo reconstitui acontecimentos históricos do final do século XIX, quando, numa pequena localidade do nordeste brasileiro, Canudos, uma seita milenarista, liderada pelo profeta António Conselheiro, desafiou o poder da então jovem república brasileira. Os fanáticos, um grupo heterogéneo composto por ex-cangaceiros e jagunços, beatos e pobres, rejeitavam medidas políticas como o casamento civil, o sistema métrico, os recenseamentos e os impostos. Acreditavam que, quando fossem atacados pelas autoridades, D. Sebastião e o seu exército viriam em seu socorro. No meio da disputa entre republicanos e monárquicos, o movimento religioso de Canudos tão incompreensível fora da grelha política tradicional que era impossível acreditar que se tratasse de um movimento popular, espontâneo e místico. Os republicanos viam-no como uma manobra dos fazendeiros da Baía, dos adversários do novo regime e dos ingleses. Só essa incapacidade para compreender as motivações de um inimigo que não temia a morte explica que as primeiras três expedições enviadas pelo exército tenham sido derrotadas por camponeses munidos de alguma artilharia, mas sobretudo de machetes, foices, paus, pedras e de uma convicção sobrenatural na natureza da sua missão.

 

Neste romance total, de uma estrutura narrativa impressionante, Vargas Llosa esquadrinha todas as dimensões da sociedade, dos pobres aos poderosos, da política à religião, da guerra à intimidade, da morte ao amor. Barões, criminosos, coronéis, padres, jornalistas, índios, revolucionários, comerciantes, mendigos, aberrações de circo: a humanidade no seu esplendor múltiplo, na sua interminável busca pela felicidade, pela justiça, pelo amor e guiada por ideais tão diversos quanto Deus, a República ou a Justiça, por valores, como a honra, e impulsos, como o desejo primitivo, que transcendem todas as barreiras sociais. A grandeza deste livro só se percebe se dissermos que é um dos maiores romances do século XIX.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 23:52
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Segunda-feira, 31 De Janeiro,2011

Dr. Vargas e Mr. Llosa?

Em ensaio dedicado a Mario Vargas Llosa, “O Fotógrafo Cego” [No Bosque do Espelho, Dom Quixote, 2009], o escritor Alberto Manguel atribui à “individualidade política” do peruano “o espantoso fracasso do seu romance de 1993, Lituma nos Andes.” Manguel considera-o um romance racista que fracassa “porque o seu racismo impede Vargas Llosa de escrever bem – isto é, impede-o de dar aos seus personagens, mesmo àqueles que abomina, uma alma [...].” Lituma nos Andes, sem dúvida um romance menor, seria um ajuste de contas literário pela derrota de Vargas Llosa nas eleições presidenciais peruanas de 1990, que o escritor perdeu para Alberto Fujimori. Na opinião de Manguel, há dois Vargas Llosa: um é o autor de romances “ambiciosos, sábios, arrogantes, espansivos”, o outro é “o seu incompetente leitor”, o Vargas Llosa político que transbordou para a literatura naquele romance falhado. Esta separação é, por várias razões, desadequada e injusta. Na análise de Manguel, Vargas Llosa é um Dr. Jekyll literário que à noite se transforma num Mr. Hyde reaccionário. Esta é uma visão superficial. Os romances do escritor peruano têm uma dimensão política - embora estejam muito longe de se esgotar aí - que não convida a destrinças maniqueístas. A justificação certeira da Academia Sueca para a atribuição do Nobel a Vargas Llosa (“pela sua cartografia das estruturas de poder e pelas suas imagens incisivas da resistência, revolta e derrota do indivíduo.”) capta a polpa política de uma obra que é também um dos cumes da literatura mundial do século XX. A política é tratada de forma mais directa em Conversa n’A Catedral, A Guerra do Fim do Mundo ou A Festa do Chibo, mas estes romances partilham com A Cidade e os Cães, O Elogio da Madrasta, Os Cadernos de Dom Rigoberto, A Tia Júlia e o Escrevedor e O Paraíso na Outra Esquina o tema da utopia da liberdade individual e da luta solitária do indivíduo contra as estruturas que o anulam. Os protagonistas enfrentam obstáculos que os afastam da bolsa de liberdade onde as únicas regras válidas são as suas e os únicos fins são o prazer e a realização pessoal. Este individualismo nunca é patológico ou misantrópico. É a defesa natural de quem procura manter o espaço privado a salvo de interferências externas. O herói típico de Vargas Llosa não foge do mundo, mas precisa de um refúgio que o ajude a manter a sanidade necessária para se relacionar com esse mundo. Isto é política num sentido amplo e faz do exercício de determinar onde acaba o Vargas Llosa “bom” e onde começa o Vargas Llosa “mau” uma inutilidade que só pode ser explicada pela discordância (legítima) de Manguel em relação a posições políticas, stricto sensu, de Vargas Llosa.

 

Roger Casement, o centro de O Sonho do Celta, é mais um naquela linhagem de heróis llosianos. Casement, figura histórica da luta irlandesa pela independência, foi condenado à morte por traição e executado em 1916. Anos antes, enquanto representante da Coroa britânica, denunciara as atrocidades cometidas no Congo, então sob domínio belga, e nas explorações de borracha na selva amazónica peruana. Dedicou-se depois à causa da emancipação irlandesa e, durante a I Guerra Mundial, procurou o apoio da Alemanha para combater os ingleses. No meio de inúmeras peripécias, Casement, que regressava à Irlanda para tentar impedir os seus correligionários de avançarem para uma empresa suicida, foi preso e condenado à forca. Simultaneamente, foi levada a cabo uma campanha de difamação baseada nos diários de Casement. Homossexual, nos seus diários descrevia telegraficamente muitos dos seus encontros sexuais, reais ou imaginados. As contradições de Casement foram a sua glória e a sua ruína. Dos crimes colonialistas que testemunhou em África e na Amazónia inferiu a necessidade de libertação da Irlanda do jugo britânico. Donde a transformação: da defesa dos valores universais e dos direitos humanos passou para um patriotismo fervoroso, quase fanático, embora distante da via messiânica e sacrificial preconizada por outros líderes. Ao mesmo tempo, Casement criou uma redoma não contaminada por esta dimensão política, por estas noções de dever, através da ficção sensual dos seus diários, os seus paraísos privados. E com isto inscreve-se na tradição dos heróis llosianos: obrigados a fazer cedências no mundo real, estes heróis constroem mundos interiores, oásis de liberdade individual. Os diários de Casement são o equivalente dos cadernos de Dom Rigoberto e das loucas ficções de A Tia Júlia e o Escrevedor.

 

É lícito vermos em Roger Casement não só uma criação típica do seu autor, mas também um argumento em defesa deste. Quem foi, afinal, Roger Casement? Um humanista ou um patriota fanático? Um corajoso defensor de causas nobres ou, como o acusaram os seus inimigos, um pervertido? Ou tudo isto ao mesmo tempo? Talvez seja esta a visão mais justa e válida do próprio Vargas Llosa que, quer enquanto romancista, quer na sua aventura política, sempre teve o mérito de nunca se ter escondido. Críticas como as que Alberto Manguel lhe dirige são o preço a pagar por essa exposição, por essa coragem de enfrentar o mundo fora do trono do seu estatuto literário. Como muitas das suas personagens, ao sair da literatura para entrar no combate político, Vargas Llosa prescindiu do ideal, da cátedra moral dos livros, para negociar no purgatório do possível. Os dois são o mesmo; não se anulam, engrandecem-se. E mesmo quando avaliada sob o ângulo estreito da política ou em função de um romance menos conseguido, a qualidade literária e a dimensão humana e universal da obra são inquestionáveis. Qualidade que é reforçada com este O Sonho do Celta. Não tem, é certo, o arrojo estrutural de Conversa n’A Catedral, ou a exuberância verbal e de imaginação de A Tia Júlia e o Escrevedor. O tom é mais neutro, factual, jornalístico, mas o domínio dos tempos narrativos continua perfeito, embora exibido de forma menos radical. O Sonho do Celta é um romance de uma segurança só possível num escritor que já nada tem a provar e em absoluto acordo com a sua condição de clássico contemporâneo.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 15:03
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Segunda-feira, 27 De Setembro,2010

Conversa n'A Catedral

Quarenta anos depois da publicação de Conversa n’A Catedral, o magistral romance de Mario Vargas Llosa, a pergunta que surge logo na primeira página ainda ecoa como senha do desencanto: “Em que altura se tinha fodido o Peru?” É o Abre-te, Sésamo que dá acesso à autópsia de uma sociedade sob o jugo da ditadura. Uma nação falhada é um cadáver gigantesco composto por milhares de fracassos individuais, de ricos e de pobres, de intelectuais e de camponeses, de brancos, de negros e de mestiços. E há sempre os vermes para os quais o corpo putrefacto é um festim.

 

Apesar de retratar uma ditadura, Conversa n’A Catedral não se insere no género latino-americano de romance de ditadores. Aqui, o ditador (o General Odría que governou o Peru entre 1948 e 1956) é uma sombra tutelar, uma ausência omnipresente. Odría é a emanação provisória do regime e dos interesses que o sustentam: “Bom, enquanto conseguirem mantê-los satisfeitos, eles apoiarão o regime. Depois arranjam outro general e põem-nos fora. Não tem sido sempre assim no Peru?” Vargas Llosa desvia-se do tema do exercício solitário do poder absoluto e centra-se na descrição da ditadura enquanto sistema. O fundamental é a descrição dos mecanismos de controlo e repressão, dos bastidores onde se unem as pontas soltas dos interesses, das encenações em que o poder se celebra. Um ambiente propício ao cínico, pragmático e maquiavélico Cayo Bermúdez, cérebro e Cerbero do regime, eminência parda que rapidamente se transforma na peça essencial do jogo do poder. Enquanto Bermúdez, homem endurecido pela miséria e pelo orgulho, nunca teve ilusões, Santiago Zavala, outro dos personagens centrais do romance, perdeu-as antes de chegar aos 30 anos. Menino bem, filho de um dos apoiantes e cúmplices do regime, Zavalita renuncia aos privilégios de classe e à protecção da família para também ele falhar, apenas com o parco consolo de o fazer pelos próprios meios. É Zavalita que, anos mais tarde, conversa n’A Catedral, uma tasca de Lima, com o negro Ambrosio, ex-motorista do pai e de Cayo Bermúdez. Juntos, tentam perceber o que os levou até ali. Essa longa conversa, que atravessa todo o romance, é a trave mestra da assombrosa obra de engenharia narrativa que é Conversa n’A Catedral. Ao leitor é exigida uma participação atenta na construção do enredo e da complexa teia com dezenas de personagens, constantes saltos temporais e diálogos que se cruzam numa dinâmica caleidoscópica.

 

A cidade de Lima, mortiça e suja, surge como sinédoque da sociedade peruana: dos bairros finos aos bairros de lata, dos palácios do poder às tascas esconsas, dos clubes reservados às casas de má fama, tudo sob a mesma cacimba mole que leva Zavalita a concluir que, como tudo o resto, “até a chuva estava fodida neste país; se ao menos chovesse a cântaros”. E a pergunta inicial fica sem resposta. O que separa a descoberta do amor da desilusão conjugal, os ideais revolucionários da resignação política, o curso de Direito de um trabalho medíocre, as virtudes públicas dos vícios privados, um país próspero de uma nação miserável, não é um único momento isolado. É a vida. Triste. Cinzenta. Fodida.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 01:13
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