O Evangelho de Fogo

Jesus Cristo não esteve apenas na origem de uma grande religião, mas também de um sub-género literário que atrai escritores consagrados, gurus de auto-ajuda, romancistas pavorosos e um número indeterminado de lunáticos. No meio do lixo conspirativo e pseudo-histórico, surgem obras de inegável valor literário como Cristo Recrucificado, de Nikos Kazantzakis, ou O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago. O Evangelho de Fogo, do holandês/australiano/escocês Michael Faber, não tem a ambição destas obras. É uma sátira, não especialmente virulenta, sobre o meio editorial, sobre a indústria dos livros que prometem abalar os alicerces do cristianismo, sobre o fanatismo, sobre o sucesso, sobre a cultura da internet. Pode parecer muita coisa, mas o livro é magrinho, quer em número de páginas, quer em substância.

 

Encomendado pela editora Canongate para a série Mitos (publicada, entre nós, pela Teorema), o livro recria, com muita liberdade, o mito de Prometeu, o titã que roubou o fogo dos deuses para o dar aos homens. O Prometeu do romance é Theo, um investigador canadiano em missão no Iraque que, acidentalmente, descobre um quinto Evangelho. Escrito por Malco, um homem que conheceu Jesus (recorda-se do tipo a quem o apóstolo Pedro decepou uma orelha? Pois bem, era Malco), o recém-descoberto evangelho traz novidades quanto às últimas palavras de Cristo na cruz (“Por favor, acabem comigo!”) e quanto à ressureição (resumindo: discípulos com alucinações). Theo consegue a publicação do livro que se torna um best-seller instantâneo. Mas, ao contrário das intenções de Theo, que “queria ajudar a raça humana a evoluir”, as reacções dos leitores não são muito pacíficas: uma adolescente suicida-se depois de ler o livro, um homem morre quando participava numa queima de exemplares de O Quinto Evangelho, uma mulher em cadeira de rodas tenta assassinar Theo, etc. Em vez de iluminar e aquecer, o fogo trazido por Prometeu queima e destrói.

 

As dez páginas em que Faber glosa os comentários dos leitores no sítio da Amazon são o momento mais inspirado do livro. Já o evangelho de Malco é trabalhado de forma preguiçosa e num estilo confessional e auto-depreciativo que se parece mais com as lamentações de um judeu nova-iorquino do século XX do que com o testemunho de um contemporâneo de Jesus. Não é uma falha grave porque Faber não se leva muito a sério, o que nos leva a concluir que este seu evangelho é feito de um fogo que não aquece, nem arrefece.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 11:28
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