O Cairo Novo

Cairo. Anos 30. Numa sociedade em transição para a modernidade, os estudantes universitários Mamoun Radwan e Ali Taha representam dois modelos sociais antagónicos. O primeiro, inspirado no Islão. O segundo, baseado no socialismo. No entanto, O Cairo Novo é um romance sobre a terceira via do niilista Mahgoub Abdel Dayim, que rejeita todas as convenções, meros obstáculos que o impedem de aceder ao que lhe interessa: “o prazer e o poder, obtidos pelas vias e pelos meios mais simples, sem obedecer a uma moral, uma religião ou uma virtude” (p. 29). Enquanto Mamoun e Ali Taha viajam com mapa, Mahgoub navega à vista, ridicularizando as crenças e os pensamentos alheios como se fossem um lastro que dificulta as manobras na direcção do mais conveniente, mesmo que não seja o mais correcto. Quando a doença do pai o deixa sem recursos, o ressentimento de Mahgoub aumenta. Um ressentimento contra a família, as raízes humildes e os amigos. Um rancor contra o mundo. A solução para se salvar da miséria implica abdicar da honra. Para não ter de se confrontar com a consciência, refugia-se na maleabilidade do seu relativismo moral: “Só acreditava em si próprio. Existia, é certo, o agradável e o doloroso, o útil e o nocivo, mas o bem e o mal? Vãs quimeras!” (p. 197).

 

Naguib Mahfouz (1911-2006), o único escritor de língua árabe a receber o Nobel, coloca o seu protagonista perante um dilema dostoiveskiano. São várias as semelhanças entre Mahgoub e Raskolnikov, o anti-herói de Crime e Castigo. As escolhas que fazem para enfrentar os problemas têm a mesma substância amoral. Ambos acreditam que estão para além do bem e do mal e que não podem ser julgados pelos códigos que repudiaram. São dois super-homens que, no fim, acabam derrotados por falta de músculo para suportar as teorias que propugnam. A consciência e a necessidade de um amor genuíno regressam com uma “força tirânica”, contra a qual nada podem as “almas arrogantes” e as “filosofias cínicas.”

 

A estrutura de O Cairo Novo é de um classicismo irrepreensível, desde a apresentação das personagens ao desenrolar da narrativa através de quadros (os pedidos de ajuda de Mahgoub, a visita às pirâmides, a festa de caridade, o passeio de iate). O ritmo é ditado pelos andamentos - crise, reviravolta, bonança e tragédia – que têm os olhos postos no final, na conclusão moralizante que não deixa espaço para a redenção. O crime de Mahgoub só tem direito a castigo.

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 15:46
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