Jesus de Nazaré

Se Bento XVI anunciasse urbi et orbi que estava a trabalhar num guião de ficção científica sobre aranhas alienígenas, os cristãos pensariam tratar-se de uma piada de mau gosto. E provavelmente seria. Quase tão improvável quanto esse hipotético anúncio é pegar num livro intitulado Jesus de Nazaré e ver que o autor é Paul Verhoeven, realizador de filmes tão pouco católicos como Delícias Turcas, Robocop ou Instinto Fatal. Enquanto admirador da obra cinematográfica do holandês, a minha reacção foi confirmar se era o mesmo Paul Verhoeven. Era. De seguida quis confirmar se Verhoeven aplicava a sua habitual receita iconoclasta e provocadora. A resposta foi negativa. Não que o agora exegeta abdique totalmente dessas características, mas porque o livro resulta de um interesse de muitos anos na figura de Jesus Cristo e da participação, de há duas décadas para cá, no Jesus Seminar, um thinktank composto por teólogos, filósofos, historiadores da Bíblia e por um realizador de cinema. Verhoeven revela um conhecimento profundo dos Evangelhos e de muitos estudos sobre a vida de Jesus. A sua visão é a de um Jesus secular, mutável, humano – o que pode irritar epidermes religiosas mais sensíveis – mas é fundamentada e não se cinge a uma forma de provocação adolescente ou sensacionalista.

 

No prefácio, Verhoeven conta que, ainda criança, perguntou ao pai se Jesus “tinha sofrido muitas dores quando fora crucificado.” Alguns dos filmes de Verhoeven fazem eco dessa preocupação infantil. Em O Quarto Homem, filme ainda rodado na Holanda, o protagonista, um escritor católico e bissexual, tem uma visão em que lhe surge a imagem do amante crucificado. Já nos EUA, é em Robocop, por muito estranho que pareça, que encontramos referências crísticas. A morte do polícia por um grupo de criminosos tem sido vista como uma espécie de crucificação e o regresso à vida em forma de máquina como a ressurreição. Por trás da representação gráfica da violência e do sexo, do mau gosto de não poupar o espectador à crueza dos detalhes, o cinema de Verhoeven vibra de uma inteligência mordaz e sarcástica, capaz de citar Hitchcock ou Riefenstahl enquanto critica uma indústria de entretenimento no interior da qual os seus filmes são quase subversivos.

 

O olhar de Verhoeven sobre os Evangelhos não é apenas o de um auto-didacta que ocupa o tempo livre a estudar aquilo que se conhece sobre a vida de Jesus. Verhoeven traz o olhar do argumentista para a sua análise - desconfia da veracidade, pesa os efeitos dramáticos – e conclui que os evangelistas maquilharam de tal forma Cristo que, para o leitor moderno, é impossível distinguir os traços humanos da figura. Não se trata de falsificação grosseira mas de quatro sessões de spin que trabalharam no sentido de um Cristo divinizado e perfeito, igual do princípio ao fim da vida, sem contradições e cujos aspectos mais polémicos foram atenuados ou simplesmente eliminados. São vários os exemplos: o nascimento de Jesus é sobrenaturalizado, o papel político de Jesus é camuflado, o facto de ser um fugitivo também, a complexa relação com João Baptista é simplificada (na verdade, Jesus usurpa as funções de João), o cruel Pôncio Pilatos é apresentado a uma luz muito favorável. Para esta gigantesca operação de cosmética, os evangelistas taparam buracos narrativos recorrendo aos textos do Antigo Testamento e a outras fontes históricas, artísticas e mitológicas (Verhoeven mostra as semelhanças entre a última noite de Cristo e um episódio relatado em II Samuel, entre as últimas palavras do messias e o Salmo 22, a eventual inspiração de Mateus numa frase de As Troianas, de Eurípides e a relação do milagre do vinho com as festas dionisíacas). Numa perspectiva dramática, a ideia dos evangelistas era a de fechar um círculo, construir um argumento perfeito que unisse as pontas soltas, tal como precisamente um filme de Hollywood em que nenhuma questão permanece em aberto. Apesar disto, não é caso para se substituir a leitura canónica por este evangelho segundo São Verhoeven. Trata-se de uma interpretação pessoal que tem os seus exageros e que, em alguns momentos, não esconde a sua natureza especulativa (ver a interpretação que Verhoeven faz do episódio de Lázaro – pp. 178-179). Mas isso também acontece nos Evangelhos e na obra de Paulo, o grande teórico do Cristianismo, que centrou a sua mensagem na ressurreição de Cristo, deixando o homem em segundo plano. O reconhecimento do radicalismo das propostas morais de Jesus, da beleza, simplicidade e força das suas parábolas, da coragem da sua acção e do extraordinário desafio que, à época e ainda hoje, está implícito na sua mensagem de confronto com os poderes políticos e religiosos vigentes, não pode depender de uma aceitação da sua natureza divina. Verhoeven procura levar-nos ao homem escondido atrás de séculos de iconologia seráfica. Um homem como nós e melhor do que nós, com dúvidas e com esperanças, carismático e em transformação, vulnerável à ira e ao medo, que ameaçava o status quo e que, por isso, estava sob ameaça – um homem cuja mensagem é valorizada quando o pensamos assim, mais humano e menos divino.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 12:19
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