Quinta-feira, 23 De Dezembro,2010

Os inquilinos do sétimo círculo

A literatura não se cansa de nos oferecer suicídios. Na vida real, conhecemos as histórias de alguns. Amigos, parentes, conhecidos que tomaram um último cálice de veneno, que se atiraram de um terceiro andar ou de uma ponte, que ficaram no meio da linha à espera do comboio, que deram o tiro de misericórdia. Um desgosto, uma doença terminal, uma vida incurável: nada parece ser suficiente para justificar o acto e, contudo, nenhum gesto parece tão racional, lógico, quando imaginamos os sofrimentos indizíveis que o motivaram. Não somos capazes de julgar um acto que não sabemos se é heróico ou trágico, cobarde ou corajoso, desesperado ou cruelmente lúcido. Talvez tenha um pouco de todas essas características.

 

Em 2003, Tad Friend publicou um artigo na New Yorker sobre os suicidas da Golden Gate, em São Francisco. Entrevistou um homem que sobreviveu ao salto e estas foram as suas palavras: “I instantly realized that everything in my life that I’d thought was unfixable was totally fixable – except for having just jumped.” Os suicidas bem sucedidos inspiram-nos desdém pelo egoísmo revelado, admiração pela determinação necessária para executar o gesto e uma estranha compaixão que resulta de não termos acesso ao derradeiro assomo daquela consciência. Queria apenas chamar a atenção? Será que se arrependeu? E no caso de não se ter arrependido, que valores podem justificar o atentado contra o bem supremo? O suicídio não tem sentido? Ou é o único clarão de sentido numa vida absurda? Confrontados com estas questões, somos levados a repetir o célebre incipit de O Mito de Sísifo, de Albert Camus: “Il n’y a qu’un problème philosophique vraiment sérieux: c’est le suicide.”

 

E, no entanto, os suicídios não são todos iguais. Na literatura, muitas vezes a finalidade do suicídio é oposta. O suicídio de Judas Iscariotes é ignominioso, uma morte adequada ao seu papel de traidor. Se Judas morresse às mãos de um dos discípulos ou, anos mais tarde, de morte natural, à traição faltaria o derradeiro opróbrio, a mancha final e eterna. Os evangelistas não brincaram em serviço e Judas tem direito a dois suicídios: Mateus escreve que Judas se enforcou e Marcos, nos Actos dos Apóstolos, afirma que Judas “adquiriu um campo com o salário de seu crime. Depois tombando para frente arrebentou ao meio e todas as vísceras se derramaram.” Muito diferente é o suicídio de Antígona, na tragédia homónima. Condenada por Creonte a viver emparedada, Antígona tira a própria vida quando o tio se preparava para revogar a pena. Ainda hoje, Antígona é um símbolo da luta do indivíduo contra a Razão de Estado e o seu suicídio um grito contra a tirania. Quando a desgraça se abate sobre Creonte (a mulher Eurídice e o filho Hémon também se suicidam) o seu castigo não é a morte mas “ter de continuar a viver” (Maria Helena da Rocha Pereira, Antígona, Ed. Gulbenkian, 1992) o que coloca em perspectiva a afirmação de que a vida é o bem supremo.

No livro Atentar contra Si, o escritor Jean Améry (que se suicidou dois anos após a publicação do livro) analisa dois “suicídios” muito diferentes (desde logo porque um é ficção e não se concretiza e outro é real) para questionar aquela afirmação: o do segundo-tenente Gustl, personagem de um conto do austríaco Arthur Schnitzler, e o de uma empregada doméstica cuja história ocupou as primeiras páginas dos jornais durante a juventude de Jean Améry. A empregada atirou-se de uma janela alegadamente por não ver correspondida a sua paixão por um galã da rádio. Gustl pensa em suicidar-se por não se julgar à altura do “uniforme imperial”, depois de ter sido humilhado numa briga com um padeiro. Em ambos os casos, Améry detecta nas “personagens” a consideração de valores que se sobrepõem à própria vida. No caso de Gustl, o código de honra do exército, o significado do uniforme que enverga. No caso da empregada, “a voz maviosa do artista”, as promessas de felicidade que não se podem cumprir. O primeiro é um quase-suicídio político, relativo à polis, anti-antigoniano (a razão do corpo colectivo impera sobre o indivíduo). O segundo é pessoal, íntimo e sentimental, claramente wertheriano. No entanto, Werther (A Paixão do Jovem Werther, Goethe) é não apenas um suicida mas também, na definição de Améry, um suicidário, alguém que corteja a ideia da morte voluntária e que é capaz de produzir pensamento sobre o tema (Améry, ele próprio, é o exemplo do suicidário que, por fim, se suicida). Eis a síntese da teoria wertheriana: “A natureza humana [...] tem os seus limites: pode suportar a alegria, o sofrimento, a dor até certo ponto, arruína-se, porém, mal ele seja ultrapassado. Assim, a questão não é ser-se fraco ou forte, mas conseguir suportar a medida do seu sofrimento, seja moral ou físico. E acho tão estranho chamar covarde a quem põe fim à própria vida como a quem morre de febre maligna.” Werther, incapaz de lidar com a frustração amorosa e social, não morre de febre maligna. O seu suicídio, baseado na teoria que expôs, é o reconhecimento de que, em determinadas circunstâncias, a vida não é o bem supremo. Uma ideia que tem sido aproveitada pela literatura, das tragédias gregas ao romance do século XIX.

 

No seu romance mais recente, The Humbling, Philip Roth elenca alguns suicidas em peças teatrais (Hedda Gabler, Jocasta, Ofélia, Fedra) para concluir que “what was remarkable was the frequency with which suicide enters into drama, as though it were a formula fundamental to drama, not necessarily supported by the action as dictated by the workings of the genre itself.” A estrutura dramática pede o suicídio. A literatura socorre-se da morte voluntária para punir os prevaricadores, para castigar os sobreviventes e para exacerbar o clímax. Neste sentido, Madame Bovary é uma descendente de Judas (as trinta moedas de prata que Judas recebeu certamente chegariam para pagar a dívida de três mil francos que é a gota de água que empurra Ema para a morte) e parente afastada da empregada doméstica de Améry. O seu suicídio é um castigo que não mancha as mãos de outros e resulta de ilusões amorosas de natureza muito distinta da paixão do jovem Werther. Os sentimentos nobres de Werther contrastam com a sensualidade pequeno-burguesa e um tanto reles de Ema, embora as personagens partilhem fraquezas de carácter. Enquanto Goethe “mata” Werther de uma forma limpa e digna, Flaubert “constrói” a agonia de Ema (que ele dizia ter sentido fisicamente) como um resumo da sordidez moral da personagem. Mas a grande diferença reside aqui: Werther escreve, Ema lê. Madame Bovary não é uma suicidária. O suicídio é apenas a resposta desesperada à situação em que caiu. A antítese do suicídio de Jeremiah de Saint-Amour, uma das mais fascinantes do vasto panteão de personagens inesquecíveis concebidas por Gabriel Garcia Marquez. “Nunca hei-de ser velho”, confidencia de Saint-Amour à amante. Refugiado antilhano, inválido da guerra, fotógrafo de crianças e xadrezista, Saint-Amour prepara o suicídio com método. O acto não nasce do desespero. É um projecto acalentado durante anos, planeado ao pormenor e executado sem falhas. Encerra-se em casa, fecha portas e janelas e vaporiza cianeto de ouro numa tina. Na porta deixa um aviso: “Entre sem tocar e avise a polícia”. Deixa uma carta de onze páginas ao seu melhor amigo, o Doutor Juvenal Urbino. A caligrafia é “esmerada”. O suicídio de de Saint-Amour, uma personagem secundária, ocorre logo nas primeiras páginas de Amor nos Tempos de Cólera. Por estes motivos, não pode ser lido como um “truque” dramático exigido pelas convenções do género romanesco. É apenas a afirmação serena mas resoluta, expurgada de todo o desespero, de que até na literatura a vida não é o bem supremo.

 

No Inferno de Dante, os suicidas habitam o sétimo círculo. Pier della Vigna é o primeiro encontrado por Dante no seu percurso. Della Vigna era secretário de Frederico II. Conhecedores da influência que exercia sobre o imperador, os nobres conspiraram contra Della Vigna, que acabou acusado de traição. No contexto da obra de Dante, este episódio equivale a uma absolvição de Della Vigna, vítima de uma acusação injusta. Para o tema do suicídio, mostra-nos que há coisas sem as quais não vale a pena viver. Um uniforme, a voz de um cantor, a honra, o respeito pelos nossos mortos, a juventude, a confiança daqueles que servimos e amamos, tudo o que nos pode parecer fútil ou desnecessário quando comparado com o bem que é a vida, é essencial para que alguns homens e mulheres insistam em viver. A vida e os livros estão aí para nos ensinar esta lição.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 15:52
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Segunda-feira, 27 De Setembro,2010

Indignação

Indignação, vigésima-sétima obra de Philip Roth, começa e acaba no sangue. Começa no sangue ritual num talho judeu de Newark e acaba no sangue de um soldado na guerra da Coreia. No início, a distância entre ambos é enorme, mas através de uma sucessão de acasos vai sendo progressivamente eliminada até ao trágico desfecho.

 

O narrador é Marcus Messner, um jovem judeu de comportamento irrepreensível. Apesar de ser um óptimo aluno e de ajudar os pais no negócio do talho, Marcus começa a ser vítima da paranóia do pai, que vive aterrorizado com a possibilidade de acontecer uma desgraça ao único filho. O pai Messner está convencido de que “o mais pequeno passo em falso pode ter consequências trágicas”. Ironicamente, o conflito entre os dois está na origem da tragédia, como se, em vez de a travar, o receio do pai servisse de alavanca à engrenagem do destino. Para se libertar da severa jurisdição paterna, Marcus decide ir para Winesburg, uma pequena universidade no conservador Ohio.

 

Com o país mergulhado numa guerra distante que custa a vida a milhares de jovens, o campus é o seguro de vida de uma juventude privilegiada. A guerra da Coreia é o rio da História. Marcus caminha em segurança pela margem. O romance, que segue essa linha, vai sendo pontuado por pequenos incidentes: a má relação de Marcus com os colegas de quarto, a iniciação sexual com uma rapariga que afinal sofre de distúrbios psiquiátricos, o confronto filosófico-religioso com o deão dos alunos e até uma prosaica apendicite. Cada um destes eventos representa um pequeno desvio no rumo traçado por Marcus, escolhos no caminho que provocarão o passo em falso de consequências trágicas. Ao fugir do pai, o “herói” cai inadvertidamente num ambiente que lhe é moral e socialmente hostil. Refém da vaga de emoções que nascem da auto-descoberta e constrangido pela pressão da “autoridade”, Marcus toma decisões aparentemente inócuas que se revelam fatais. A sua propensão juvenil para a mais bela palavra da língua inglesa, a que dá o título ao livro, trai as suas boas intenções.

 

Em Indignação, Philip Roth abandona os temas do envelhecimento e das urgências sexuais na terceira idade que marcam o seu período azul-viagra. No entanto, insiste no tema da proximidade da morte, que tinge de cores outonais este romance de iniciação. Roth também prossegue o seu estudo sobre a tensão política e moral entre as duas Américas. Uma tensão sempre pronta libertar-se por meio de uma guerra longínqua, de um inesperado fellatio ou de uma invasão das residências femininas numa pacata universidade.

O trabalho de Roth em Indignação, tragédia que expõe as fraquezas do indivíduo perante a sociedade (família, escola, religião), que esmaga as ilusões pueris do “herói” em relação ao amor, ao sexo e à morte, é quase o de um tecelão minucioso a unir os fios do acaso. É como síntese desse labor, e não como advertência moral, que a última frase do livro deve ser lida. É na arte do romance, e deste romance em particular, que “as opções de uma pessoa, mesmo as mais banais, fortuitas e até cómicas, têm o resultado mais desproporcionado”.

 

 

 

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 01:08
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