A Ilha do Tesouro

Os clássicos chegam até nós muito antes de os lermos. São nossos mesmo antes de virarmos a primeira página. São livros que lemos “com prévio fervor e misteriosa lealdade”, para utilizar a definição de Jorge Luis Borges. A Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson, é um desses livros. Por isso, quando o lemos, o sentimento não é de descoberta, mas de reencontro. O reencontro com algo que nos pertence desde sempre: Long John Silver, o pirata arquetípico da perna de pau e de papagaio ao ombro, o mapa do tesouro com o X que marca o local, a coragem adolescente de Jim Hawkins.

 

Seja qual for a classificação – romance de aventuras, de formação ou para jovens – o mais interessante é observar os meios que Stevenson usou para exacerbar a imaginação dos seus leitores. As hipérboles que tornam tudo excessivo, como convém ao romance de aventuras: “o pirata mais sanguinário” (p. 53), “dava a impressão de ser o melhor homem deste mundo” (p. 85), “era o homem mais generoso que havia no mundo” (p. 119), “jamais houve gente tão feliz” (p. 257); o repertório de emoções fortes, como injecções de adrenalina em cada página: “infundia um terror de morte” (p. 38), “o coração batia-me desordenadamente” (p. 39), “um ruído que me pôs o coração na boca” (p. 41), “ainda me não recompusera do pavor horrível” (p. 95), “comecei a sentir-me horrivelmente assustado” (p. 189), “sentia-me extraordinariamente entusiasmado” (p. 189), “prossegui, já em estado de grande exaltação” (p. 214); a promessa de acontecimentos extraordinários: “Tinha o espírito cheio de sonhos de aventuras no mar e em ilhas exóticas”, contudo “naquele sonhar acordado não aconteciam aventuras mais extraordinárias do que as que íamos viver” (p. 61); o conflito entre valores como a coragem, a honra e o dever, representados pelo grupo do narrador, e a ganância, a crueldade e a imoderação (alcoólica e financeira) dos piratas. Entre estes dois blocos antagónicos, desenhados a preto e branco, ressalta o colorido e moralmente ambíguo Long John Silver, com as suas constantes alterações de humor, de planos e de lealdades. Um vilão que não conseguimos odiar e de quem queremos gostar mais do que a sua personalidade desconcertante nos aconselha; por fim, o tesouro que simboliza o regresso ao prazer de uma leitura inocente e mágica. O tesouro que Robert Louis Stevenson trouxe de uma ilha longínqua para o deixar, eternamente, ao alcance das nossas mãos.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 20:05
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