A Evolução de Deus

“Deus tomou o seu lugar no conselho divino; no meio dos deuses ele faz o seu juízo.” Proferida no interior de uma religião monoteísta esta frase tem uma ressonância herética. Seria mais adequada à mitologia de religiões antigas e de cultos pagãos, mas na verdade pode ser encontrada no Salmo 82. A versão oficial diz-nos que o monoteísmo surgiu do nada, que o Deus Todo-Poderoso foi uma revelação (e revolução) súbita no monte Sinai e fez tábua rasa de todas as religiões e deuses falsos que o precederam. Preceder não é o verbo correcto porque, para todos os efeitos, Iavé, o deus dos israelitas, é o Alfa e o Ómega, o princípio e o fim. E é assim que aqueles que acreditam num Deus único gostam de o ver. A possibilidade de que o seu Deus tenha emergido de um caldo variado de divindades é quase uma blasfémia. Pouco preocupado com as sensibilidades dos crentes, Robert Wright demonstra que a origem do monoteísmo é mais politeísta do que se pensa. A ideia, expressa no título, é que o conceito de divindade, como qualquer criação da mente humana, evolui, adapta-se e está sujeito a influências mundanas. Sintetizando: “As circunstâncias mudam e Deus muda com elas” (p. 242).

 

No longo e sinuoso trajecto que vai dos deuses tribais, antropomórficos e vingativos à ideia de um Deus universal, abstracto e compassivo, a eclosão do monoteísmo é o que mais se aproxima de uma revolução, de uma mudança brusca de paradigma. Mas é exactamente a transformação “revolucionária” que torna mais fiável uma teoria “evolucionista”. É impossível acreditar que sociedades politeístas tenham, de um momento para o outro, curvado a espinha perante um deus ex machina, totalmente alheio às suas crenças e desvinculado das suas tradições. A hipótese de Wright, a de que o monoteísmo resulta de um processo de selecção cultural, feito de avanços e recuos, partindo do politeísmo e passando por uma fase intermédia de monolatria, é bem mais plausível. A própria evolução de Iavé ao longo das Sagradas Escrituras é um argumento a favor da tese de Wright. Se, por hipótese, excluíssemos a teoria da evolução da divindade, nenhuma solução permitiria reconciliar o Deus vingativo que promete destruir os adversários de Israel com o Deus misericordioso que nos exorta a amar os nossos inimigos. Há aqui uma evolução nítida um crescimento moral, que Wright explica com recurso às condições políticas, externas e domésticas, do berço de Iavé, Israel. Como diz Régis Debray no seu Deus: Um Itinerário (Âmbar), Iavé começou por ser “um deus local entre outros” (p. 89). Numa época em que identidade nacional e religiosa não se distinguiam, as alterações no quadro político tinham uma influência directa na esfera do divino (“uma política cá de baixo projectada no mundo do alto”, Debray, p. 53). Permanentemente acossada e, por vezes, humilhada pelas grandes potências regionais (Assíria e Babilónia), a nação de Israel forjou uma identidade na adversidade, ancorada na ideia de um Deus único, de tal forma poderoso que utilizava os exércitos inimigos para demonstrar o seu ponto de vista. O que começou como um negócio local evoluiu para uma multinacional do divino (metáfora sobreutilizada por Wright), derrotando a concorrência quer através de fusões inteligentes (Iavé herdou muitas das características dos seus rivais), quer através da simples aniquilação. O destino deste trajecto foi o ponto em que Iavé não era apenas o mais importante dos deuses, mas o único a que era reconhecido o direito de existência. Todos os outros foram empurrados para a categoria das mitologias primitivas, dos contos de fadas. Para esse desfecho, a ajuda de alguns reis israelitas (como o monólatra Josias) foi fundamental.

 

Saber se foi a política a influenciar a teologia ou se foi a teologia a encaminhar a política para o monoteísmo, não é fundamental dado que as duas dimensões eram praticamente indissociáveis. O que Wright afirma é que o monoteísmo foi uma opção mais ou menos consciente que, em determinada altura, cimentou o poder político e beneficiou a facção religiosa que o defendia (os sacerdotes não eram, na altura, anjos apolíticos e desinteressados, até porque a religião não era entendida como a vemos hoje, uma dimensão autónoma da sociedade. Wright menciona que o antigo hebraico não tinha uma palavra para definir religião.) Este raciocínio não atira a religião para uma função meramente instrumental, sem agenda ou interesses próprios, e não exclui a teologia como motor das alterações, mas é inegável que acentua o lado estratégico das crenças em detrimento da sua natureza teológica. Wright vê no triunfo do cristianismo (uma invenção do apóstolo Paulo) um exemplo perfeito desta lógica. Na óptica do investigador, Paulo é mais um empresário à procura de expandir o seu negócio (neste caso, a religião) do que um doutrinador ou teólogo. O amor universalista (embora para Wright seja menos universal do que habitualmente se pensa) pregado por Paulo não seria o resultado de uma filosofia do amor, mas a melhor forma de manter a coesão da Igreja num contexto de rápido crescimento no interior do Império Romano. Wright entende o sucesso do cristianismo paulino como a prova de que as suas características foram definidas tendo o sucesso em vista, numa lógica  empresarial, como se a promessa de vida depois da morte fosse o equivalente religioso das promoções dos hipermercados. O risco deste tipo de leitura é o de atribuirmos intenções em função dos resultados. Que a religião existe para suprir necessidades espirituais e morais dos seres humanos é um facto. Como essas necessidades variam de época para época, temos de admitir que a religião (o conceito de divindidade, aquilo que oferece em troca aos crentes) evolui ao ritmo dessas mudanças, mas sem exagerar na metáfora do mercado (Wright descreve Maomé “como um homem que teve o génio de preencher um nicho espiritual” p. 443). Quando Fílon de Alexandria conciliou Atenas e Jerusalém (capítulo 8), a ciência e a religião, através do Logos, não o terá feito por pensar que isso resultaria no crescimento da religião, mas provavelmente porque estava a tentar resolver um dilema interior, natural num homem que cresceu entre dois pólos aparentemente antagónicos. A solução que encontrou teve sucesso porque o dilema que enfrentava era partilhado por uma parte significativa da sociedade, ou seja, a sua proposta revelou-se socialmente útil.

 

A redução da evolução de Deus a uma lógica mercantilista, a uma questão de oferta e de procura – que tem alguma utilidade analítica – põe em segundo plano comparações, que não devem ser desdenhadas, com a filosofia e a literatura. Se é possível ver o apóstolo Paulo como um empresário no negócio da religião, também é possível vê-lo como um filósofo na bolsa de valores das ideias ou um escritor no mercado das narrativas. Aquela, como vimos, é a perspectiva de Wright, e explica que foi o sucesso a orientar a doutrina de Paulo. As outras privilegiam o lado filosófico e literário. Um filósofo não pensa em função da eventual popularidade das suas teorias, tal como um verdadeiro escritor não escreve para ter sucesso. Podem desejar o sucesso, mas não é isso que os move para o pensamento e para a escrita. São conceitos como a verdade e a beleza que os motivam. Conceitos que estão mais próximos da religião do que o conceito de troca comercial. Algumas orientações religiosas estão relacionadas com as expectativas dos seus seguidores (pensemos na discussão sobre o celibato dos padres ou a ordenação de mulheres) e, concomitantemente, com a sobrevivência de determinada religião. Mas o instinto de sobrevivência não é património exclusivo do mundo empresarial, daí que o cinismo implícito naquela metáfora a torne apenas parcialmente eficaz. Podemos dizer que, neste ponto, Wright leva longe de mais a sua tentativa de drenar o absoluto da religião, uma tarefa que leva a bom porto na maior parte do livro. Se tivéssemos de escolher uma frase drástica para resumir a “tese orientadora” de Wright seria: a religião não tem nada de absoluto. A história ensina-nos que a religião não tem de ser boa ou má, beligerante ou tolerante; não é, numa palavra, determinista. A religião existe para responder às necessidades dos homens. O seu aparecimento, de uma ou de outra forma, em todas as sociedades prova que existem determinadas questões comuns a toda a humanidade, mas que não conferem à religião um carácter ahistórico e transcendente. Para Wright, a religião obedece sempre aos factos no terreno, adequa-se aos interesses circunstanciais dos seus seguidores: “Os deuses falam através dos seus seguidores, portanto, quando mudam as interpretações maioritárias de um deus, o próprio carácter do deus muda” (p. 245). Para os fiéis, esta absoluta contingência da religião e da divindade, a ideia de que Deus pode ser o que quiserem que ele seja, é difícil de aceitar. Para os restantes, que olham de fora os conflitos religiosos do nosso tempo mas que são afectados por eles, é uma mensagem de esperança ambivalente: Deus existe e o seu futuro está nas mãos dos que nele acreditam.

 

publicado por Bruno Vieira Amaral às 12:21
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