A Beleza e o Inferno

Há uma linha que une a maior parte dos artigos incluídos neste livro: Roberto Saviano. Não é o facto de terem sido escritos por Saviano, mas o facto de serem sobre Saviano. Depois de ter publicado Gomorra, uma descrição exaustiva do modus operandi da Camorra, Saviano ficou com a cabeça a prémio. A partir daquele momento, passou a (sobre)viver sob protecção policial. O próprio definiu a sua existência pós-Gomorra como uma não-vida. Nessas condições, que testemunho nos pode dar um jornalista-escritor que não seja sobre essa experiência? Quando nos relata o seu encontro com Lionel Messi, pensamos nas medidas de segurança necessárias para viabilizar esse encontro. Quando Saviano escreve sobre o dia em que conheceu Salman Rushdie ou sobre o jantar com Joe Pistone (o agente do FBI que se infiltrou na Máfia e cuja história foi adaptada ao cinema em Donnie Brasco), o assunto implícito é Roberto Saviano. Para um jornalista, é uma maldição talvez ainda mais nefasta do que a própria morte. No discurso que proferiu na Academia Sueca, Saviano falou do exemplo de Anna Politovskaia, a jornalista russa assassinada em 2006, e dedica-lhe um artigo (Quem Escreve, Morre, p. 249). De acordo com o ex-marido de Anna, a jornalista temia mais as campanhas de difamação que pretendiam desacreditá-la do que a morte. Felizmente, a Camorra não conseguiu calar Saviano. Mas ao condená-lo a uma vida fora do mundo, a um inferno muito particular, de certa forma neutralizou-o. Saviano, e não o que ele tem para dizer, passou a ser a verdadeira notícia. Salman Rushdie continuou a escrever romances. Mas o que pode fazer um jornalista, ainda que pratique jornalismo literário, como Saviano? Alguns dos artigos aqui reunidos sugerem soluções: notas de heroísmo individual e de sacrifício (o pianista Michel Petrucciani, os jornalistas Giancarlo Siani e Enzo Biagi), um excelente ensaio sobre a obra de Isaac Baashevis Singer, reflexões sobre o ofício narrativo de factos históricos (Apocalipse Vietname, Este Dia Será Vosso Para Sempre).

 

Desde que é um homem a prazo, o grande desafio de Saviano é não deixar que o mensageiro seja mais importante que a mensagem. Em A Beleza e o Inferno esse desafio não é ultrapassado porque o olhar do leitor é constantemente desviado para a estátua de liberdade e de coragem em que Saviano se transformou. Uma estátua que evoca valores fundamentais, mas que ainda assim é opaca, como todas as estátuas.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 15:44
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