O Tesouro

“Na época em que o rei Frederico II da Dinamarca reinava na província de Bohus, vivia em Marstrand um pobre peixeiro, de nome Torarin.” Um arranque destes já era anacrónico quando Selma Lagerlöf escreveu O Tesouro, em 1904. Hoje, assente que está a poeira das modas, podemos considerá-lo intemporal. A história emerge com a solidez da sua simplicidade. Combina elementos dos contos populares e das histórias de fantasmas, sob uma atmosfera moral e religiosa, inspirada em lendas escandinavas e em episódios bíblicos.

 

O Tesouro narra a história de Elsalill, uma rapariga que se apaixona por um dos homens que lhe matou a família. Perseguida pelo fantasma da irmã adoptiva, Elsalill vive atormentada pela dúvida: denunciar o homem que ama ou fugir com ele, tornando-se cúmplice do crime e carregando em silêncio a culpa dos dois. A questão central do romance é este dilema moral de Elsalill, no qual se confrontam os seus sentimentos e uma noção de justiça transcendente. Enquanto os assassinos não são punidos, não é apenas a alma da irmã que não tem descanso; a própria Natureza, o longo braço de Deus, impõe as suas leis. O barco que levaria os criminosos de volta à Escócia, de onde eram originários, permanecerá encalhado no gelo até que a justiça seja feita. Sendo a paixão de Elsalill o único obstáculo entre o crime e o castigo, o seu sacrifício torna-se a condição para o apaziguamento dos defuntos e da cólera divina. Ao aceitar o seu destino trágico, Elsalill expia o seu pecado: o de um amor corrompido pela culpa.

 

Simples na caracterização das personagens e na descrição dos ambientes, e profundo no tratamento dos temas (amor, culpa, redenção), O Tesouro é uma obra anti-naturalista que reveste a estrutura dos contos tradicionais de uma sensibilidade cristã típica dos países nórdicos. Um antepassado literário de filmes como A Palavra (Dreyer), A Fonte da Virgem (Bergman) e Ondas de Paixão (von Trier), com os quais partilha a austeridade mística e a economia narrativa. Selma Lagerlöf, a primeira mulher a receber o Prémio Nobel, escreveu um romance sem adiposidades, sempre as primeiras presas da voracidade do tempo. A designação de clássico serve-lhe na perfeição.

publicado por Bruno Vieira Amaral às 18:48
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