Vício Intrínseco

Vício Intrínseco não contribui muito para instalar Thomas Pynchon no trono de Grande Escritor Americano, mas uma coisa é o nome de Pynchon, a intrincada mitologia que o rodeia, e outra coisa é este romance policial, psicadélico, divertido e paranóico. Policial porque a) tem como protagonista o detective privado Larry “Doc” Sportello, um detective para acabar de vez com os Sam Spades e Philip Marlowes, um detective que nunca se zanga e que raramente se apercebe do que se está a passar até ao momento em que a realidade lhe cai em cima e ele é obrigado a reagir; b) começa com um homicídio e um rapto; c) tem polícias pouco ortodoxos; d) tem fêmeas fatais. Psicadélico porque há nele uma profusão de cores que dá a sensação de termos caído numa alucinação technicolor depois de uma má trip de ácidos. Psicadélico porque há muita droga, embora Sportello não curta ácidos e esteja mais interessado em experimentar todo e qualquer tipo de erva disponível. Divertido porque assim é o universo de Pynchon: anagramas, artefactos pop (a bola autografada por Wilt Chamberlain, a caneca de Wyatt Earp), cruzamento de referências bíblicas com desenhos animados, bandas inventadas de surf rock e mesas ouija, filmes antigos e programas obscuros de televisão, polícias que coleccionam arame farpado e memorabilia do Velho Oeste, música, música e música, dos Beach Boys aos Archies, de Roy Orbison até Tom Jobim. Estas referências não estão no livro apenas para situar a acção temporalmente, à maneira da Revista dos Dois Mundos ou dos livros de Walter Scott num romance do século XIX; elas são a própria essência de Pynchon, um enciclopedismo das margens da cultura dominante, um quadro de pop art cheio de detritos da sociedade de consumo. Tem piada, mas o abuso da autofagia pós-moderna também cansa. Paranóico porque, de tantas vezes repetida, paranóia é a palavra-chave do livro. Abundam as organizações clandestinas e subversivas, fachadas que ocultam fachadas, “a máfia atrás da Máfia” (p. 272).

 

A América deste livro é a América da paranóia e das conspirações, de Salem e do Macartismo ao surgimento das figuras negras que marcam o fim simbólico do Verão do amor e da idade da inocência hippie: Charles Manson e Richard Nixon, duas ausências omnipresentes na atmosfera do romance. Misturados todos os ingredientes pelo virtuosismo pop de Pynchon, Vício Intrínseco resulta num requiem psicadélico e paranóico para o “pequeno parêntesis de luz” (p. 279) que foram os anos sessenta.  

publicado por Bruno Vieira Amaral às 17:48
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